Professora e pesquisadora, Ruth Verde Zein recebe prêmio internacional pelo livro Critical Readings.
N o dia 19 de julho Ruth Verde Zein, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, recebeu o prêmio CICA Dennis Sharp Book Award 2020 pelo livro Critical Readings (2019). “Submeti a obra ao prêmio por sugestão de amigos. Por ser um livro modesto, eu não esperava que teria todo esse retorno”, comenta a professora que, juntamente com outros dois autores, recebeu a honraria na categoria CICA Bruno Zevi Book Award 2020.
Critical Readings está disponível em e-book e na versão impressa. O livro faz parte da coleção Pensamento da América Latina, e apresenta um compêndio formado por textos teóricos, históricos e críticos de arquitetura organizados em três temas: ensino e pesquisa; estudos de caso; panoramas. Muitos dos textos foram escritos em espanhol e inglês com o intuito de serem apresentados em congressos e eventos internacionais.
Amparada por sua trajetória como pesquisadora, Ruth analisa criticamente a prática e o ensino de arquitetura. O livro premiado na versão em português (Leituras Críticas, 2018), já havia recebido Menção Honrosa no Prêmio da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ) de Livros em Segundo a comissão da premiação nacional, a obra é provocativa e contribui para o urgente e necessário debate em torno da produção da arquitetura brasileira contemporânea.
Fale sobre seu livro e como surgiu a ideia de escrevê-lo.
Eu escrevo profissionalmente sobre arquitetura há muito tempo, por volta de 1980, e já trabalhei em revistas. Mesmo quando comecei a trabalhar como professora, integralmente, eu continuei escrevendo. O meu primeiro livro foi publicado por volta do ano de 2000 e, nesses 20 anos que se passaram, eu participei da publicação de outros livros, como autora, co-autora e colaboradora. Então quando o Abílio Guerra e o Fernando Lara lançaram a coleção Pensamentos da América Latina, eu brinquei com eles: “bom, só tem homens nessa coleção?”. Dessa brincadeira surgiu o convite para escrever um livro. Eu tinha vários textos que haviam sido publicados e estavam esgotados, outros que estavam escritos somente em inglês e espanhol, e outros que nem foram publicados, então eu tive a ideia de fazer uma coletânea dentro do espaço disponível do livro. Dentro disso, eu fiz uma seleção de textos e os organizei em três partes: ensino e pesquisa, onde há reflexões sobre textos; estudos de caso, onde eu coloquei algumas leituras de obras e arquitetos; panoramas, onde inclui dois textos, um texto sobre algumas questões do brutalismo e outro sobre o panorama latino-americano.
Eu costumo dizer que escrevo para o público, não escrevo só para mim. Por isso é importante levar em conta quem será esse público, se serão meus colegas, ou os meus alunos, ou participantes de um congresso e assim adaptar a linguagem.
Quais foram os principais desafios para concluir a obra?
Tem a questão das imagens. A ideia era produzir um livro de baixo custo, acessível para estudantes e qualquer outra pessoa, então um problema recorrente foi com as ilustrações, por conta do copyright. Pagar por todas as fotografias elevaria o preço do livro, então foi preciso pensar em como ilustrar os textos. Foi aí que lembrei que eu tinha alguns desenhos guardados que fiz durante meu mestrado e doutorado. Eram desenhos e esquemas que representavam obras que eu vi, nunca foram feitos com o intuito de serem publicados, eram exclusivamente parte do meu processo para assimilar a informação, não estavam nem na tese. Eu recolhi os desenhos e levei para a editora que achou a ideia ótima. Particularmente, eu gostei da ideia porque exemplifica uma forma de raciocínio típica de quem trabalha com cartas visuais. Esses “rabiscos” são uma forma de expressão, não uma forma de ilustrar fielmente o texto, e combinaram bem com a proposta do livro. Para complementar, não tive problema algum com os editores, eles me apoiaram muito. Evidentemente que, como em qualquer produção, você tem um limite específico de texto, mas todas as questões foram discutidas abertamente e ouvir o feedback é algo importante. O texto não deixa de ser autoral se você ouvir o que os outros têm a dizer.
Seu trabalho como pesquisadora e docente na UPM foi fundamental para desenvolver seu livro?
Com certeza. Se você trabalha como arquiteto, ou qualquer outra profissão liberal que depende do cliente, de toda uma rotina movimentada, isso cria em você um desgaste energético imenso, então é muito difícil você assumir compromissos. No Mackenzie, eu tenho um espaço confortável para ser professora e pesquisadora, algo que eu gosto muito, assim, mesmo que eu não dê aula todos os dias, eu posso trabalhar desenvolvendo pesquisa científica. Além do ambiente adequado, a instituição me proporciona estabilidade financeira, caso contrário seria muito difícil ter algum espaço para reflexão, e o respeito pelo meu trabalho, algo que é muito importante, já que escrever é um trabalho como todos os outros.
Qual a importância de debater sobre a prática e ensino da arquitetura, principalmente para a produção da arquitetura brasileira contemporânea?
Uma coisa que você não pode evitar na vida é morar. Você pode até ficar sem comer algo, não ir ao cinema ou ao teatro, mas você precisa morar em algum lugar. O ambiente construído é uma parte inevitável e se investe muito nesse setor, digamos, é uma das atividades financeiras mais poderosa de qualquer país, não só o Brasil. No entanto, todo mundo está descontente. Por melhor que seja ou por melhor que se faça, ninguém acha que a cidade está ótima, ninguém acha que o lugar que habita está perfeito. Mas esse assunto é tão cotidiano que talvez as pessoas se esquecem de pensar em questionar: “Por que isso é assim? Não poderia ser de outra maneira?”. Então a reflexão sobre o habitat, no sentido amplo da palavra que inclui não só a cidade, mas todo o restante do planeta e nossa relação com ele, é fundamental. Precisamos educar as pessoas para serem arquitetos funcionais, pessoas que saibam projetar e possuam espírito crítico. Caso contrário, quem terá o espírito crítico? O mercado? O mercado busca lucro e a busca pelo lucro não é errada em si, mas ela leva à uma perda total de valores de patrimônio, de valores de legado da cidade e de sua história, da ecologia e de muito mais. Por isso, a formação do arquiteto não deve ser voltada somente a ensinar a projetar, não somos máquinas, muito menos um software. Adquirir espírito crítico não é algo simples, somente com a reflexão, com a leitura, com o debate, com a conversa e com a experimentação concreta dos lugares, buscando entendê-los melhor, é possível adquiri-lo. A arquitetura é sim um estudo técnico, mas também é um estudo teórico-crítico, e não pode deixar de ser.
Quais foram os critérios utilizados para selecionar os textos presentes na coletânea?
Posso dizer que eu tenho muita experiência e isso é uma vantagem na hora de escolher um texto. Então um dos critérios foi selecionar os textos que, recorrentemente, colegas e alunos me pediam cópia porque estavam esgotados, mostrava-se um interesse pelos textos. Tínhamos a ideia de publicar esse livro em inglês, até porque alguns desses textos foram feitos originalmente em inglês. E não é só escrever na mesma língua, os textos foram feitos para a mentalidade norte do planeta. Então vários desses textos têm o sentido de falar de questões da arquitetura brasileira moderna e contemporânea de um ponto de vista que não é normalmente falado. O Brasil é estereotipado, fala-se em Brasil e logo se ouve falar de Oscar Niemeyer, de Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. São todos excelentes arquitetos, mas a arquitetura brasileira não é só isso, é muito mais complicada. Inclusive, o meu texto sobre o Artigas, presente no livro, é chamado Não é bem assim, inspirado na música It ain’t necessarily so da ópera Porgy and Bess. O Artigas foi um excelente arquiteto, mas costuma-se circular mitologias sobre ele e outros arquitetos que acabam transformando-os em “deuses”, em ícones ou pessoas perfeitas. Sendo assim, eu escolhi muitos textos por achá-los provocativos, essa é uma característica que eu gosto e uso muito em meus textos. Outros, eu escolhi pelo exercício prático de análise de obras, explicando como eu analiso as obras, lembrando que não é uma fórmula. E têm textos que utilizei como homenagem poética, como o Nem um dia sem uma linha, meu texto favorito do livro que escrevi como homenagem para o Paulo Mendes da Rocha. O livro é bem diverso e era isso o que eu queria, é como se o livro fosse uma coletânea de mim mesma formada por diferentes textos, sobre diferentes autores e escritos em diferentes épocas.
Com a conclusão do livro, quais serão seus próximos passos?
Eu já tenho outro livro no forno. Ele é muito mais didático, mas dá continuidade a algumas questões que eu abordo no livro anterior, principalmente no texto Quando documentar não é suficiente, que é uma crítica às histórias e como elas estão organizadas. As histórias de arquitetura do mundo estão mal escritas, absolutamente todas, porque todas falam da arquitetura sobre um único ponto de vista, ignorando muitas outras partes do planeta onde existem diversas coisas acontecendo. E não é só incluir os “excluídos” nos livros, a questão é que quando se considera tudo muda-se completamente a história. Por exemplo, existe a ideia que a arquitetura surgiu na Europa, depois foi para a América Latina e então para o Brasil, mas não foi assim. Quando você analisa as obras e suas datas vê que as informações não batem, não é essa a história. Toda a construção dessa história que conhecemos é totalmente ideologizada. Então o livro é uma análise de oito livros panorâmicos da história da arquitetura brasileira, onde eu e meus alunos fizemos um levantamento de todas as obras que são citadas neles, bem como quantas vezes elas se repetem. A partir dessas recorrências, criamos uma série de gráficos paramétricos em 3D para analisar essa massa de dados mais facilmente. O leitor poderá acessar todos os gráficos e as mais de 950 obras por QR code, devidamente listadas com informação de onde são citadas, assim, buscamos quebrar essa “canonização” das obras que são mais recorrentes nas salas de aula. Para não ficar somente na pesquisa, o livro contará com textos de variados autores, tanto alunos que trabalharam no projeto, como colegas do Brasil e do exterior. E não vou parar por aí, meu próximo plano é expandir essa análise para as obras da América Latina e depois para o mundo.
Matéria publicada originalmente na revista aU.