Especializado em Life Center, arquiteto conta como novo tipo de projeto agrega aos moradores da cidade e como isso se diferencia de centros comerciais padronizados.
Conceito novo e atualizado com a atual situação econômica do mundo, os Life Centers são a especialidade do escritório Jayme Lago Mestieri. Apesar de poder soar parecido com o já famoso Shopping Center, o próprio arquiteto já alerta que não se trata de um centro de compras. “É um ponto de encontro para a vida onde as pessoas se encontram e fazem novas conexões, cada uma com a sua história. Alguns frequentam para ir ao médico, outros estão voltando do trabalho enquanto outros vão para sua casa. Suas diversas atividades do dia a dia que se organizam e se desenrolam destes centros”, detalha. Segundo ele, a premissa do Life Center é criar também um espaço de convivência, agregando assim uma opção ao tecido urbano. Em conversa exclusiva com a aU, o arquiteto conta como é trabalhar com esse tipo de projeto e como a pandemia modificou a visão da sociedade para este tipo de empreendimento.
Seu escritório é especializado em projetos de Life Centers. O que seria esse conceito? Existe diferença de um shopping, por exemplo?
Nosso escritório especializou-se nos desenhos de grandes centros comerciais. Entendemos o varejo e sobretudo as demandas deste perfil de empreendedor. Já temos mais de 70 desses empreendimentos desenhados pelo Brasil afora, com um total de 2.5M de m² projetados. Estes produtos estão intimamente ligados à realidade econômica e consequentemente ao comportamento da população, e isso aqui no Brasil tem mudado constantemente.
Alguns anos atrás o incentivo econômico e governamental impulsionou o consumo para modelos em que a comercialização exclusiva do varejo era muito lucrativa. Estes empreendimentos não abriam portas para receberem outros tipos de uso. Era o modelo então rentável, porém artificial. São poucos os exemplos que persistem neste formato, que poderiam oferecer 100.000,00 m² exclusivos composto por lojas. Estes exemplos já estão consolidados e construídos.
A queda no consumo, ou melhor, sua estabilização resultou na revisão deste equipamento. Diversas lojas satélites sofreram com as cobranças ditas excessivas e altos valores condominiais e fecharam suas portas. Os pais de família que passaram por dificuldades financeiras sentiam-se constrangidos em passear com suas famílias por corredores repletos de vitrines sem seu poder de compra restaurado.
Em minha opinião, a força invisível da cidade e da vida acabou empurrando esses grandes empreendimentos em abrir o seu leque de ofertas e aproximar sua gama de bens e locações às realidades das ruas de uma cidade, onde encontramos a combinação do varejo com serviços, saúde, bem-estar, corporativo, residencial e até multi family. É claro que a vocação de um empreendimento em função da sua implantação, no seu bairro e momento, vai determinar um uso como protagonista, mas hoje em dia todas estas construções estão sendo combinadas num modelo de negócio que pode ser um pouco menos rentável que modelo de décadas atrás. Por outro lado, são mais realistas e duradouros.
Seus passeios são mais ricos, vibrantes, com corredores abertos, praças verdes internas e áreas democráticas. Podemos frequentá-los sem a necessidade iminente das compras ou do varejo. Ainda assim, os life centers são adotados pelas suas comunidades e se tornam pontos de referência e destinos, tornam-se os pulmões do bairro, o empreendimento não se torna obsoleto e consegue evoluir com as demandas da cidade.
Por isso a revisão também do nome: para esses novos modelos nós não devemos chamar mais de Shopping Center. Não é um centro de compras. É um ponto de encontro para a vida onde as pessoas se encontram e fazem novas conexões, cada uma com a sua história. Alguns frequentam para ir ao médico, outros estão voltando do trabalho enquanto outros vão para sua casa. Suas diversas atividades do dia a dia que se organizam e se desenrolam destes centros.
Como é trabalhar com projetos de larga escala desse tipo?
O nosso escritório sempre esteve envolvido com projetos em larga escala. Acabamos nos especializando por este tema através de clientes privados ou concessões públicas mas que, de uma forma ou de outra, afetam diretamente a sua zona primária: o tecido urbano, as circulações e como consequência a rotina de milhares de pessoas.
Nós estamos participando do desenho de mais de 18 terminais urbanos de metrô, trem e rodoviário, sempre interligados com outros serviços e outros empreendimentos. Os grandes shopping centers também que desenhamos o nosso escritório agora estão em transformação como defendemos que são exemplo constante de projeto também em nosso escritório. Também temos projetado muitos Master Plans para Desenvolvimento planejado de grandes glebas em cidades de São Paulo e também pelo Brasil, procurando sempre conectar os novos empreendimentos com o tecido urbano de uma forma progressiva, faseada e natural.
Este tipo de projeto requer uma enorme coleta de dados. Trabalhamos lado a lado com institutos de pesquisa presentes sempre nas nossas reuniões de trabalho. A contagem do fluxo de pedestres e da circulação de veículos é atualizada constantemente e considerada nas nossas simulações intervenções destes espaços
Nosso escritório tem que conhecer a fundo o perfil de três usuários importantes deste sistema. Primeiramente, o empreendedor que vai incorporar este grande complexo, investir e, logicamente, buscar o seu retorno. Em segundo lugar, o locador do espaço que nós iremos alugar, seja varejo, serviços como laboratórios, academias, instituições de ensino, profissionais liberais em suas lojas e outros. Por fim também, devemos conhecer o usuário, aquele público que vai atravessar nosso empreendimento para se deslocar ao trabalho para voltar dele, que vai ao nosso empreendimento para utilizar o seu serviços, para fazer compras e etc.
São várias as camadas que se interagem nestes espaços. Por isso nós só terminamos o nosso projeto praticamente quando a obra inaugura, porque esta interação é constante e em muitos casos pede por alterações e adaptações até a última hora. A interação e apresentações constantes do projeto são feitas tanto para o poder público como também para os investidores e para a comunidade através de audiências públicas ou privadas. As associações de lojistas e de moradores também são sempre muito participativas e isso requer o nosso cuidado e consideração para todas as opiniões pertinentes. Acreditamos que este exercício de arquitetura é muito mais valioso e deve vir antes do que a escolha de acabamentos ou exercícios estruturais.
Como conduzir o fluxo de centenas e até milhares de frequentadores desses espaços da melhor maneira? Como o projeto é pensado nesse sentido?
Empiricamente, nós temos a média de um passante por dia a cada metro quadrado de espaço locado ou habitado. Como os nossos produtos geralmente têm em torno de 30.000 m² de área bruta locável, chegando até entre 70 e 80.000 m², o fluxo de pessoas é considerável. Ainda mais quando conectado com a malha de transporte público, nestes casos chegamos a mais de 200.000 passantes por dia.
Hoje, nosso escritório está com mais de 18 desses centros conectados ao transporte público em desenvolvimento e projetos. Além disso, estamos com 29 life centers em construção pelo Brasil. Esses projetos são iniciados pelo fluxo, pelos escapes e também pelos acessos e circulações verticais. Ao redor deles que os demais espaços e compartimentos vão se formando.
Daqui a dois meses vamos inaugurar, por exemplo, na área central de São Paulo, um complexo com 241.000 m² de área construída e 42.000 m² de área para locações. Quase 200.000 m² direcionados para circulações, acessos de rampas para pedestres, esteiras rolantes, grande terminal privado com mais de 320 ônibus, 2.500 vagas, docas e mais de oito entradas que deixaram o circuito de compras de São Paulo completamente ventilado e impermeável como devem ser este centro
Life Centers são uma tendência?
As construções com uso misto são uma tendência. Do ponto de vista do usuário, é uma conveniência e não torna o empreendimento ocioso à noite ou durante o dia. Do ponto de vista do empreendedor, mitiga os riscos e dá longevidade ao equipamento. Tomando como exemplo uma comparação interessante, muitas grandes construções, como shoppings centers que foram planejados de uma maneira errada, hoje estão sofrendo e alguns deles com risco até de fechar. Não conseguem se adaptar.
Por outro lado, nós não vimos nenhuma rua comercial de nenhuma cidade que venha a fechar. Elas terão as suas dificuldades, os seus locadores poderão ser trocados, mas as ruas permanecem ativas à medida que a economia avança. Nós temos que assumir a característica dinâmica e flexível de um tecido urbano para um equipamento de grande porte como o Life Center
O formato do Life Center está sempre em evolução e deverá evoluir assim como as cidades e bairros evoluem. Poderá ser coberto, fechado, aberto, repartido, vertical, horizontal de acordo com a economia, com a localização e com a circunstâncias.
Como os Life Centers afetam a cidade?
Esses empreendimentos não deixam de simular a realidade das ruas, um pequeno trecho de um bairro ou um tecido urbano. São um tubo de ensaio muito interessante onde administração pública é substituída pela iniciativa privada. São como pequenos prefeitos que garantem a segurança, saúde e salubridade para esta pequena polis, mas com um controle de mix.
Infelizmente, a maioria avassaladora das praças e parques públicos ou são mal cuidados ou sofrem com problemas de segurança. Estes equipamentos oferecem praças abertas, gramados, oportunidade para eventos com uma oferta de segurança e limpeza superior a das ruas e aberta para todos. Como Life Centers são grandes, eles geram um volume de tráfego alto, seja dos pedestres como também de carros e aplicativos.
Para que a área primária não se deteriore, estes centros também geralmente qualificam a sua área envoltório com melhorias no trânsito discutidas e projetadas com a secretaria de transporte locais. As áreas de estacionamento, além de prever o fluxo interno, também geram capacidade de absorção dos carros ao seu redor. Isto ajuda a qualificar um pouco mais as ruas, liberando terrenos que poderiam estar ocupados por estacionamentos para novas iniciativas e empreendimentos.
Os Life Centers também se conectam com o sistema de transporte público local, propondo paradas de ônibus em pequenos terminais e, se possível, conexão com o sistema ferroviário como fizemos em alguns casos. Nós procuramos sempre comunicar e dialogar com os vizinhos abrindo o empreendimento para as ruas. Além de um reforço com a segurança interna do empreendimento em tudo com o entorno, a comunicação através dessas chamadas lojas, acessos públicos para todos os lados, vitrines e visualizações são sempre importantes
Como esse conceito se alia à sustentabilidade?
O investimento privado tem que fechar a conta. Por isso o cuidado com os custos de manutenção e operação são muito mais importantes e acompanhados de perto do que qualquer órgão público. Os gastos de manutenção, desgaste e consumo são sempre ensaiados com práticas novas de energias renováveis e também de reduções dos seus sistemas.
Estes produtos também estão sendo implantados nos diversos estados do Brasil, em cidades das mais variadas. Não podemos contar com o mesmo nível de qualidade nas redes públicas de esgoto, energia ou até drenagem. Nós teremos de responder aos diversos locatários que irão tomar áreas neste espaço, portanto as soluções de consumo e descarte contam com o mínimo possível de iniciativa pública. Temos de atingir o nosso topo de eficiência com soluções simples e baratas, dentro do possível.
Temos centros como este sendo inaugurados em cidades de 40.000 habitantes na norte do Brasil, em comunidades sem qualquer infraestrutura, portanto a visão dos empreendedores, de sua equipe técnica, é que este produto deve levar mais do que tirar para garantir o seu bom diálogo com a cidade e promover o seu desenvolvimento é bom relacionamento
A pandemia mudou em como você lida com projetos desse tipo hoje? E o que esperar de Life Centers para depois da pandemia?
A pandemia gerou a demanda por várias pesquisas de mercado que foram elaboradas especificamente para este tipo de equipamento. Em todas as pesquisas a conclusão é que as pessoas precisam de pessoas. Os hábitos de conexão social em contato voltaram, isso não mudará. Muitos empreendimentos, entretanto, estão sofrendo com vacância e com falta de uso por não conseguirem se adaptar ao sistema multi-uso, buscando novos locatários ou se adequando a novos hábitos.
Eu defendo que a pandemia venha a reforçar uma tendência de volatilidade econômica, sobretudo no Brasil, onde os grandes investimentos feitos em construção devem gerar produtos versáteis. Nós temos que desenvolver uma bela arquitetura, mas que possa ser alterada ao longo dos anos onde novos clientes e novos locatários possam se adaptar perfeitamente. Isto hoje é imperativo.
As práticas que podem envolver também reduções no impacto dessas obras no trânsito, quanto ao uso de materiais, também se torna relevante. Termos uma maior inteligência no desenho para redução nos consumos de água e energia. Isso é importante não para procurarmos certificações, mas sim para reduzirmos o valor do condomínio para o pequeno empresário.
Os nossos grandes empreendimentos se abriram para as áreas internas, dispensando uso integral do ar-condicionado e utilizando um pouquinho mais a inteligência dos ventos da insolação e, mesmo em centros quentes como por exemplo Manaus, Luís Eduardo Magalhães, Rondonópolis, estamos implantando satisfatoriamente projetos que puderam dispensar a climatização integral.
Muitos profissionais com a crise foram demitidos e usaram o seus recursos para criar pequenos negócios, franquias e outras iniciativas. Cabe aos grandes empreendimentos apoiar estas iniciativas com cobranças honestas, isto vem muito de uma boa arquitetura.
Matéria publicada originalmente na revista aU.