Exposição sobre o arquiteto João da Gama Filgueiras Lima é tema de conversa que expõe o precioso legado do mestre. Fotos: divulgação
Um dos arquitetos brasileiros que trouxeram grande contribuição para o estudo de modelos construtivos na construção civil, João da Gama Filgueiras Lima, mais conhecido como Lelé, é tema da exposição Lelé: um Projeto de Brasil, apresentada pela Escola da Cidade em comemoração aos seus 20 anos de existência. Para saber mais sobre a exposição e compreender a importância da figura do arquiteto para a contemporaneidade, a aU conversou com Anália Amorim e Valdemir Rosa, professores da Escola da Cidade e responsáveis pela curadoria da exposição. Acompanhe a conversa a seguir:
Falem sobre a exposição Lelé: um Projeto de Brasil. Como vocês pensaram e organizaram as atividades que estão sendo realizadas?
Anália: Essa exposição é uma ampliação de um acervo importante que chegou no Museu da Casa Brasileira (MCB) em 2010, que foi feito com a curadoria de Giancarlo Latorraca e de Max Risselada. O Giancarlo nos ligou e perguntou se havia interesse de ter essa exposição na Escola da Cidade, uma vez que ela já estava comprometida, porque estava dentro de um acervo, eles não iriam fazer de novo. Perguntamos à Adriana Filgueira Lima, filha do Lelé, se ela acolheria o material e ela disse que sim. A partir disso, começamos a nos mobilizar na Galeria da Cidade, que é o salão térreo da Escola da Cidade, para organizar a exposição. Tudo com um caráter muito didático, pois a exposição serve de apoio tanto para demonstrar a obra do Lelé, que alguns conhecem, mas muitas pessoas não, quanto para acolher as atividades didáticas, não só da Escola, mas de outras escolas, servindo de atividade complementar para muitos estudantes. O percurso que montamos é um percurso didático: na primeira ala estão os hospitais, com uma série de fotos de canteiros; na segunda ala estão os tribunais e as passarelas, com ajuda de maquetes e painéis que também vieram do MCB. Além disso, quem visita a exposição pode assistir a uma programação de quase 72 horas de aulas e outros vídeos de Lelé que capturamos em acervos públicos. Também tem um material preciosíssimo nosso que foi, ao longo desses 20 anos, sendo coletado pelos alunos que iam para o CTRS (Centro de Tecnologia da Rede Sarah), a grande última fábrica do Lelé e a mais duradoura. E o último segmento da exposição, destinado aos pesquisadores exporem os legados do Lelé, além das dissertações, teses e trabalhos que estão todos listados, inclusive, em QR Code.
Valdemir: Como a Anália citou, temos um viés muito didático na exposição. A Escola da Cidade, que começou com a graduação, construiu o curso de pós-graduação Conceber e Construir e agora apresenta o ensino médio, chamado de “Fábrica Escola de Humanidades João Filgueiras Lima”, em homenagem ao Lelé, evoluiu bastante. E todo esse ciclo, neste primeiro semestre, vai estar bastante apoiado nessa exposição do Lelé, usando esse material em discussões na sala de aula.
Há alguma curiosidade na exposição?
Valdemir: Um ponto interessante da exposição é a linha do tempo do Lelé que imprimimos e colocamos no vidro da fachada que aponta para a rua. Isso foi uma forma de colocar nosso trabalho na rua para que as pessoas que passavam pela calçada pudessem ver. Em relação às obras presentes na exposição, ainda estamos coletando novas contribuições, porque nessa busca apareceram outros projetos e coisas que não deram para pôr.
Anália: Teve uma parte muito bonita que foi os depoimentos que pedimos para as pessoas que pesquisam o Lelé ou trabalharam com ele fazerem. Conseguimos uma quantidade significativa de depoimentos e isso tem aberto muitas portas. Quando o Valdemir falou sobre a linha do tempo eu me lembrei de um episódio que aconteceu no dia da inauguração, quando um morador de rua olhou para um obra de banheiro público posta na linha do tempo e disse que a ideia tinha valor. Isso quer dizer que, de fato, a cidade acolheu aquilo como um grande grafite explicador de arquitetura e urbanismo e isso nos interessa muito. Não posso esquecer também do cuidado que tivemos com as crianças que acompanham os pais na exposição. Colocamos desenhos e charges do Lelé na altura do olhar da criança, um lugar que só ela consegue ver.
Qual a importância da trajetória do Lelé para a arquitetura contemporânea?
Anália: Ele é o cara que na década de 60 e 70 já pronunciava as grandes preocupações de hoje, como questões que envolvem a economia energética, a economia de materiais, o bem-fazer e a economia de escala. Ele já era contemporâneo desde o século passado e acho que isso é de grande importância.
Valdemir: O Lelé vem do movimento moderno, começando a trabalhar com o concreto armado, mas ele vai dando leveza ao projeto dentro da concepção de retirar material e pensando em como cobrir os mesmos espaços com muito menos. Isso é importante e está diretamente ligado ao projeto e ao desenho gerado. Posso destacar também a questão da ventilação e da insolação dos projetos. Nos hospitais, por exemplo, em 25 mil m² não há ar condicionado, você só encontra o recurso nos centros cirúrgicos. Então pensar como tudo isso vai estabelecer diálogo com o meio ambiente, com o território, com o terreno que está sendo implantado. É um projeto que está adequado.
Como a atuação do Lelé é importante para a industrialização da construção e para o desenvolvimento de processos mais eficientes de arquitetura pré-fabricada?
Anália: O Lelé poderia influenciar muito mais hoje porque ele era uma das pessoas que mais avançaram com a pré-fabricação no mundo. A questão de você ter no canteiro o aperfeiçoamento do projeto, como você conversa o projeto arquitetônico com o fazer e, mais importante, como não fazer do processo industrial uma repetição de formas. Ele criou um conceito que vai ser assimilado em cada projeto e que gera novas soluções, de dimensões espaciais, por exemplo. Essa é uma característica da industrialização que poderia ser um farol na construção civil.
Valdemir: Na arquitetura pré-fabricada tem-se o discurso que quando se constrói tudo fica igual, mas o Lelé está aí para mostrar que não é assim. É preciso entender o processo de produção industrializado, que vai gerar uma família de peças e desenhos que podem ser reproduzidas, mas que são recompostas de uma outra forma. Não é que a arquitetura vai chegar pronta, a arquitetura pré-fabricada é diferente da arquitetura modular. Precisamos tomar muito cuidado para que o arquiteto não vire apenas um especificador de formas. É preciso entender o processo, o arquiteto precisa cada vez mais ser importante nisso e o desenho também, tornar-se mais fundamental para desenvolver peças e não ter uma massificação.
O que difere a obra de Lelé dos demais arquitetos modernistas brasileiros? Em que seu legado é único?
Anália: O Lelé era um arquiteto que não acompanhava uma obra de fora, ele estava literalmente dentro do canteiro. Ele não visitava a obra, ele fazia a obra. Isso foi um diferencial muito grande pois raros arquitetos fizeram isso. Essa coisa da vivência interna é muito peculiar do Lelé. E ele não se destaca apenas pela metodologia do fazer o projeto através do canteiro, mas também dando continuidade a metodologia de observar a obra, em todos os seus estágios e processos, e interferir nela.
Valdemir: Ele vem da arquitetura moderna, tanto é que ele vai continuar a carreira com total respeito ao Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Esse diálogo com a arquitetura moderna existe, o que tem de diferente é o que a Anália comentou, a presença dele na obra. Os projetos chegavam para ele com poucos detalhes, não havia tempo para isso, então o Lelé vai se envolver com tudo isso e vai detalhar a obra. E quando você está dentro da obra e conhece o material vai percebendo que o material vai dialogando com o projeto. Posso citar também a preocupação dele com a questão técnica da execução e também a qualidade espacial, em relação com a arte. Às vezes, quando se fala em técnica de pré-fabricação parece que não há qualidade pois os materiais, como vigas, já vem pronto das indústrias. Por isso temos defendido cada vez mais o arquiteto no canteiro de obras e, mais do que isso, o arquiteto pensando o desenho dessa pré-fabricação.
O Lelé tem algum projeto marcante para vocês?
Anália: Eu gosto muito do projeto do Lelé em Abadiânia, em Goiás. O fato de dar autonomia para as comunidades através da construção de pequenas fábricas, mesmo que depois venham as grandes fábricas, a Rede Sarah e os tribunais, é importante. O que marca é a dedicação forte que ele tem em todo o seu percurso com as pequenas fábricas que dão autonomia a canteiros que podem permanecer para manutenção e com a clara intenção de formação de mão de obra local. Isso ficou muito claro no projeto Minha Casa Minha Vida quando ele pensou no “barracão”, uma pequena fábrica de componentes que permaneceria até o fim do projeto atendendo a necessidade da comunidade.
Valdemir: É difícil de pontuar qual obra seria mais marcante. O conjunto da obra do Lelé é fundamental, mesmo porque ele vai evoluindo no processo, sempre com o acúmulo do conhecimento e assumindo os erros. Na sua trajetória, Lelé foi interrompido constantemente pois tudo tinha que ser feito com muita velocidade, muito por conta das preocupações políticas. Os projetos eram feitos em governos progressistas, então era preciso fazer 20 anos em apenas 2, já que era sabido que viria alguém e destruiria tudo o que foi construído. Por isso, às vezes, ele pensava em alguma solução que só seria usada em um próximo projeto. Como a Anália pontuou, Abadiânia de fato é um projeto importante. Alguns anos antes, em Salvador, ele já havia feito a parte de infraestrutura junto com Mário Kertész, e em Abadiânia surgiu a oportunidade de fazer o prédio completo, a Escola Rural Transitória. Nesse projeto junto com a comunidade, ele produz a escola, forma a mão de obra, faz a ponte em argamassa armada e uma série de coisas envolvendo os moradores locais. Isso é algo que caminha com o que eu venho defendendo, o fato de construir uma pequena fábrica nas comunidades, onde você produz peças, gera renda, gera emprego e, de forma cooperativa, produz e deixa o capital circulando, diferentemente do que acontece com as construtoras. O CTRS, que foi o maior projeto dele em termos de tempo e volume, por exemplo, mostra isso. Ele foi construído por uma associação, a APS (Associação das Pioneiras Sociais), então é possível construir sem os grandes empreiteiros que são apenas intermediários financeiros.
Com a comemoração de 20 anos da Escola da Cidade, a instituição atingiu seu objetivo?
Anália: Nesses anos que estamos juntos na Escola da Cidade, acho que temos tido um esforço coletivo muito intenso e muito rico de contribuições. A Escola da Cidade é uma associação, uma instituição leve do ponto de vista burocrático, o que dá um frescor para que possamos inovar a cada ano, quase como se fosse o canteiro do Lelé: ensinamos e estamos constantemente aprendendo a ensinar. Temos diversos conselhos que lidam com questões de extensão, pesquisa e a comunicação com a sociedade. Além disso, nossos cursos, como a pós-graduação, vem se dedicando ao ensino de arquitetura e urbanismo. Hoje, na graduação, temos quase 100 professores, sem contar os professores auxiliares, os que estão no ensino médio e pós-graduação. Então, com essa constituição de associação, conseguimos tornar muitas pessoas colaboradoras e participantes dos projetos. Gradativamente, estamos criando um lugar de acolhimento e reflexão, onde a prática vai ser uma consequência dessa reflexão.
Valdemir: Como a Anália comentou, a Escola da Cidade é uma organização mais leve, uma associação horizontal com conselhos que permitem a troca entre os departamentos, o que chamamos de sequências, e temos procurado uma articulação tanto vertical como horizontal, inclusive com trabalhos que integram áreas diversas, como projeto que dialoga com a área de tecnologia que, por sua vez, conversa com o urbanismo e assim por diante. Temos também estudos com os alunos de diversos anos da graduação, onde se formam grupos de trabalho que desenvolvem projetos de acordo com um determinado tema. Isso é interessante porque cria um diálogo entre os diversos saberes desses alunos. Nosso objetivo é sempre chegar no projeto executivo e agora, saindo da pandemia, trabalhar com protótipos na oficina, colocando a mão na massa e colher bons resultados.
Sobre
Entrevista publicada na edição de março da revista aU.