Arquiteto, urbanista, designer e professor da FAU-USP e FAU-Mackenzie, Rafael Perrone é o exemplo de professor-modelo, pesquisador e profissional. Sua produção científica e arquitetônica mostra como a intersecção entre academia e mercado pode gerar um portfólio digno de nota. Por Allaf Barros.

Ele se formou em arquitetura e urbanismo em 1973, foi colega de Julio de Camargo Artigas desde a época do colegial, leciona há meio século e ajudou a formar gerações de arquitetos, urbanistas e designers. Seu legado é fazer o futuro profissional compreender o papel e a contribuição para sociedade que precisa dar. “Não se sustenta mais a visão de arquitetura que se resume a r uma série de regras e normas e técnicas.  Todo projeto é, também, uma reflexão profunda sobre um problema e requer uma visão poética sobre a vida e as relações humanas”, ensina. Com mestrado em Administração Pública e Planejamento Urbano pela Fundação Getulio Vargas – SP, doutorado e livre docência em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo, Perrone é responsável por projetos como o Teatro de Mauá e Riachuelo, escolas de inglês da Cultura Inglesa e recentemente assinou um projeto de uma creche em Paraisópolis. Ao longo de sua carreira dividida entre a academia e o mercado de trabalho, recebeu diversas premiações de projetos pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, sendo nove no total. Em 1999, recebeu o Prêmio Carlos Barjas Milan do IAB-SP, em 2003 o Prêmio Votorantim da V Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo e em 2006 o Prêmio do Júri da XXX Bienal Latinoamericana de Arquitetura. Confira a seguir uma entrevista exclusiva  com o arquiteto. 

Quando e como decidiu se tornar arquiteto e urbanista?

Eu sempre fui um bom geômetra, um bom matemático e um bom aluno de história, desde o ginásio. E a providência — se alguém pode dizer alguma coisa — quis que eu conhecesse um colega de classe que mais tarde fiquei sabendo quem era. Em meados de 1958, eu costumava passar as férias em Itanhaém, litoral paulista, e sempre gostava de ver o trem chegar e partir, coisas de moleque. E uma vez vi um prédio que tinha uma estrutura linda. Chegando em casa, perguntei ao meu pai o que era aquilo e ele disse que era um prédio de arquitetura. Fiquei intrigado em entender o que o arquiteto fazia e fui percebendo o que era. A minha brincadeira à tarde era pegar carta de baralho e dominó e fazer maquetes. Mais tarde, entendi que queria fazer “essa tal de arquitetura”. Eu conheci no primeiro ano do ginásio o Julio de Camargo Artigas e viramos colega — a gente pegava o mesmo bonde — logo depois, comecei a frequentar a casa dele. Certa vez, houve uma greve de bonde e a gente não conseguia voltar para casa. Tínhamos que ligar para nossos pais nos buscarem. Todos tinham escritório no centro da cidade. Nisso, o Júlio disse: “meu pai vem buscar a gente”. Chegou lá um cara com óculos escuro de tartaruga, muito sério, muito diferente e a história é muito interessante porque eu não sabia que ele era o Vilanova Artigas. No carro eu soltei um: ‘Não é possível, os motoristas e cobradores fazem greve e prejudicam todo mundo”. O Artigas respondeu: “Esses senhores têm o direito de se paralisar. É até bom que seja greve de bonde porque se para um, param todos”. Na minha cabeça de moleque, aquilo me fez pensar: alguém tem que ter o direito de greve. Eu tive essa felicidade e coincidência de conhecer e conviver um pouco com o Artigas. Depois, entrei na faculdade junto do Julinho. 

Como enxerga a interface entre design e arquitetura?

Sempre vejo essas relações. Quando comecei a estudar a indústria nacional não havia produto. Todos os arquitetos modernos fizeram ou estiveram acompanhados de pessoas que desenhavam móveis. Vários profissionais fizeram isso porque não havia uma indústria. Com o passar do tempo, isso mudou bastante. A ampliação do mercado e as possibilidades que a formação profissional deram foram muito positivas para as nossas carreiras. Hoje, esse movimento está mais dissipado por conta da criação de outras escolas, mais específicas, mas acho que ainda o básico existiria em função de uma escola que ensine a conceber o espaço e projetá-lo em grande, média ou pequena escala. Depois, em função da sua vida, dos contratos que têm, dos projetos que realiza ou empregos pelos quais passa. Aí, você começa a fazer. Mas tem que estar capacitado para enxergar num objeto a cidade e na cidade um objeto. Como se desenha um banco de praça se não conhece a praça da cidade? Não se trata de uma operação direta e objetiva a um determinado objeto. 

Você atuou durante muitos anos na preparação de alunos pré-vestibular, além disso, é responsável pela disciplina Fundamentos de Projeto na FAU-USP. Como avalia a evolução e as mudanças no perfil dos alunos ao longo dos anos? 

Acho que houve uma mudança grande em relação a extensão das escolas. Quando entrei para estudar na USP, tinha 40 vagas lá e no Mackenzie eram 60. A escala da cidade era outra, mas de qualquer forma a vizinhança e a concentração desses espaços eram muitos maiores. Você conhecia quase todos os professores da outra escola, convivia-se um pouco mais. Uma escola como a FAU-USP tinha 250 alunos por ano. A relação com os professores era diferente e os programas de ensino eram muito mais focados e a vivência era maior. Com a proliferação dos cursos e todo o mecanismo de educação, os programas começaram a ser regulados pelo Ministério da Educação e acabaram perdendo um pouco dessa integração e sinergia que vivíamos naquele momento. Tanto que, naquela época, como não existam escolas de arte, os alunos interessados nessa área faziam arquitetura. São exemplos Chico Buarque, Arrigo Barnabé, Flávio Império… Muitas pessoas com tendências culturais ou artísticas tinham como escola a faculdade de arquitetura. Eram pessoas que visavam mais uma relação cultural e artística que não existia nas universidades como há atualmente. Essa ampliação, por um lado foi muito benéfica, porque permitiu novas possibilidades para os alunos e para o mercado. O diretor Fernando Meirelles fez FAU-USP, o Milton Hatoum foi meu aluno, Guilherme Arantes também estudou lá. Outra coisa que mudou foi a relação professor e aluno. Tanto que está surgindo agora a escola à distância. Para nós, em termos de arquitetura, é uma condição muito complicada porque não é uma coisa fixa tipo uma aula de geometria em que eu explico, te dou cinco exercícios e você vai entender. Projetar alguma coisa envolve uma série de fatores que precisam ser dialogados e que não são uma receita que tenha uma resposta única. Às vezes, a resposta divergente é a melhor. Arquitetura não é uma prática. É um conjunto de raciocínios que precisam ser feitos e dialogados. Pode ser que eu seja superado, mas na minha concepção não dá para fazer. É como você querer ensinar fotografia. A parte técnica você pode até ensinar à distância, mas a pessoa precisa ter a vivência para poder fotografar bem. Vejo que o sistema de cotas mudou bastante a realidade das escolas. Até quatro anos atrás, entravam os alunos de família que tinham acesso ao conhecimento muito maiores, havia uma prova chamada Linguagem Arquitetônica, na qual tinha de se fazer um desenho a partir de um tema. A FAU-USP só recebia os alunos dos melhores colégios que tinham uma melhor formação, que tinham também muitas áreas artísticas, históricas e culturais… Universo diferente daquele das escolas públicas. Tudo bem diferente da época em que entrei nessa faculdade. Eu só estudei em escola pública, nunca paguei nenhuma escola. Julinho Artigas e eu viemos de uma escola pública de Santo Amaro e entramos na USP, porque o ensino naquela época era de uma qualidade incrível. Hoje em dia, o ensino se reduz a matemática, português, história e geografia, por exemplo. 

Quem são seus ídolos na arquitetura nacional e internacional?

Eu tive muitos ídolos e tenho ainda na minha cabeça que são as pessoas que me formaram e não só da arquitetura. A FAU-USP certamente me ajudou muito a compreender esse fenômeno. A desordem que teve foi que em 1969 cassaram o Vilanova Artigas, o Paulo Mendes da Rocha e muita gente que era eixo da escola. Que eram e continuam sendo junto de Oscar Niemeyer. Isso continua na nossa mente e na nossa formação, a ideia de arquitetura que eles fazem. Hoje, você tem uma série de outras questões que estamos tentando resolver por infinitas variantes de projetos e pluralidade de coisas. E houve um momento também em que a arquitetura brasileira perdeu um pouco o protagonismo. Nós fomos protagonistas. Nós somos um dos poucos países subdesenvolvidos que tem 2 Pritzker (Oscar Niemeyer em 1988 e Mendes da Rocha em 2006). Há uma certa letargia atualmente no Brasil por vários motivos, até porque não existem um aporte do estado tão forte para definir políticas públicas e projetos. Mas existe pouca, mas muito boa arquitetura feita por arquitetos que se formaram na minha geração e que me dão muitos subsídios para fazer meus projetos. A tecnologia na arquitetura se ampliou muito e os países desenvolvidos tiveram possibilidades tecnológicas diferentes e aporte financeiro muito grande. Se você pensar em São Paulo, o que foi proposto em projeto público significativo nos últimos anos? Você pega o Sesc Pompeia, o Parque do Ibirapuera, o MASP e são todos sensacionais. Conseguimos fazer isso aí. Você pega o prédio da FAU-USP, lá se foi mais de meio século desde a construção. É de uma qualidade inacreditável. Quando eu era pequeno, lembro de ter ido à Oca, no Parque do Ibirapuera, e ter ficado maravilhado com aquilo. Atualmente, por parte do poder público, temos a Praças das Artes e no universo privado temos o IMS (Instituto Moreira Salles), mas são coisas pequenas para a escala de São Paulo. Não houve nenhum novo parque como o Ibirapuera. Não houve nem a possibilidade, as oportunidades são poucas. Temos um arquiteto como o Paulo Mendes da Rocha, por exemplo, que venceu um prêmio Pritzker e tem poucas coisas construídas. O que tem de novo é o Complexo Praça dos Museus da USP que ainda está em construção. Você vai em outras cidades do mundo e há grandes possibilidades e realizações. Aqueles que me formaram me ensinaram a estar atento ao mundo e aos fenômenos que estão ocorrendo. Assim, podemos entender os fundamentos de que a arquitetura exigida pelo “modus hodiernos” será gerada não por um receituário preestabelecido, mas incorporar tudo que se avaliou nas contribuições trazidas pelo pós-modernismo, o contextualismo, as proposições vernaculares e as novas tecnologias.

Você atuou junto ao poder público em obras importantes como o Teatro Municipal de Mauá. Quais são as dificuldades e oportunidades ao desenvolver este tipo de trabalho?

Cada projeto tem uma história. Em Santo André, Mauá e Diadema eu tive uma atuação boa porque muitas pessoas que eu conhecia começaram a trabalhar na prefeitura. Eu participei de certas licitações e algumas ganhei (perdi várias também). Tivemos a oportunidade de fazer o Teatro de Mauá. É interessante que ele não começou assim como está. Começou onde seria feita uma espécie de centro cultural. Haveria um teatro, biblioteca, área expositiva uma escola de artes. Era um projeto grande e chegou a receber prêmio pelo IAB. Para esse trabalho, a prefeitura não conseguiu verba. Não sei o que aconteceu, mas a prefeitura vendeu esse terreno e hoje é há um shopping center ali. Eles pensaram então em utilizar o pátio prefeitura para fazer uma coisa menor porque tinha pouca verba. Com isso, me pediram para fazer apenas um teatro. Pensamos no projeto não apenas como uma sala de espetáculos. Lá, tem área para ensaios e aulas de teatro, além de salas para atividades culturais. Esse foi o princípio básico do projeto que é bem interessante em termos de implantação. Ele foi tombado pela prefeitura. Foi a primeira obra que eu fiz que não tinha lote, era um espaço em frente a prefeitura e eu escolhi um lugar onde seria estratégico

Ao longo de sua carreira, quais foram os projetos mais desafiadores?

Um desafio recente que tivemos foi uma escola de inglês em Paraisópolis. Esse é um trabalho muito interessante pelos objetivos sociais. Existia lá um terreno que tinha sido doado para a Igreja Anglicana e tinha uma creche criada há muito tempo que atendia cerca 200 crianças. A Igreja queria ampliar para mil alunos e a Prefeitura de São Paulo tinha muito interesse também por conta da realidade das mães daquele local que precisam ir trabalhar. Como eu já tinha uma relação com criação de escolas de inglês, foi feita a ampliação da creche e também uma unidade da Cultura Inglesa nos moldes da própria instituição. Foi interessante, tive pouco tempo para fazer o projeto porque no começo de 2019 as crianças precisavam do espaço já aberto. Para fazer no timing, preferi utilizar estruturas pré-moldadas. Houve muitas dificuldades de zoneamento e aprovação porque o terreno era de zona de interesse social. Foi por intermédio de várias pessoas da secretaria que se entendeu o projeto. Foi necessário convencer que a região precisava de mais áreas como essas de interesse social e transformamos aquela realidade fazendo aquele terreno se tornar público. Foi um desafio em todos os aspectos: velocidade de pensar o projeto e de executá-lo. Outro desafio foi uma fábrica que fiz na Bahia para a Companhia Brasileira de Lítio. Não existiam muitas fábricas de lítio na época, apenas na Rússia e nos Estados Unidos. Tive de pegar os organogramas feitos pelos engenheiros da empresa e transformar aquilo em uma realidade arquitetônica. A fábrica ficava na divisa da Bahia com Minas Gerais e não havia mão de obra e materiais necessários para a construção do empreendimento. Levou muito tempo para definirmos o sistema construtivo. Optamos por utilizar pré-moldados de cimento semelhantes aos concebidos pelo Lelé (João Filgueiras Lima) e entregamos um projeto em que todos os materiais eram transportados facilmente por caminhão. Eu acompanhei bem de perto, viajei bastante com os engenheiros para lá na época e via as alternativas. É legal você pensar a arquitetura como sua produção. Como você vai fazer isso? Qual a intencionalidade disso?

O que é arquitetura brasileira contemporânea para o senhor?

É difícil falar de arquitetura contemporânea brasileira no sentido das faltas de perspectivas de projetos em escala maior na qual o arquiteto pode interferir com o projeto da cidade. Como é de fato o Teatro de Mauá, que é uma escala que já começa a interferir na cidade ou como a Praça das Artes e até mesmo o IMS, que é uma das últimas obras feitas na Paulista. É de uma qualidade muito boa, mas não são um prédio público ou até mesmo os edifícios institucionais como os Sescs, que são prédios mais expressivos para uso da coletividade. Do ponto de vista da linguagem de arquitetura, acho que houve uma boa transformação. Porque dos anos 1970-1980 na arquitetura dita moderna, existia uma série de projetos mediterrâneos e neoclássicos. No estilo mediterrâneo não há nenhum prédio de apartamento, não existe um templo neoclássico com 20 andares e isso aconteceu muito nesse período aqui. A burguesia adorava morar nesses lugares. Hoje em dia, voltou o estilo contemporâneo de fato. Se você abrir o jornal e pegar todos os prédios anunciados, o são do ponto de vista de linguagem arquitetônica e de qualidade espacial arquitetônica. Isso vingou. O livro “Quando o Moderno Não Era Um Estilo e Sim Uma Causa”, do Anatole Kopp, foi muito importante porque ele começa a mostrar que a Modernidade surgiu de uma visão de mundo que pretendia fazer com que o grande objetivo da arquitetura fossem as habitações populares. Em parte, ele tem razão. Qual é o tema da arquitetura acadêmica? Os grandes prédios: o edifício do teatro, o palácio do governador, o palácio do rei. O arquiteto fazia as grandes obras do rei ou presidente. O Moderno passou a discutir uma arquitetura social. Se você for olhar, quase todos os arquitetos pensavam assim. Então ficou famosa a frase dele de que arquitetura não é uma causa e sim um estilo. Recentemente, o Paulo Mendes da Rocha disse algo muito interessante aqui: a arquitetura não é um estilo, é um raciocínio. Achei isso tão lindo isso. Porque quando se pensa num projeto, o que se faz é um grande raciocínio prático, não é um programa. Não é uma composição que você usa. Quando se raciocina, você deduz como um projeto ocorre. E a partir disso você chega a uma conclusão. É claro que não é científico isso porque entra intuição, entra sensibilidade, mas nesse “entrar tudo”, há um raciocínio. A arquitetura tem uma causa? Tem, mas ela também tem um raciocínio. Ensinar a raciocinar: isso é a grande coisa do projeto. É um pensamento sempre muito complexo: tem estrutura, tem vento, tem calor, tem iluminação, instalações elétricas e hidráulicas. Mas acho que é isso que você tem que pensar enquanto arquiteto e também no ensino e pesquisa. O que os outros fizeram, como fizeram, o que você pode tirar daquilo para fazer uma coisa nova, quais problemas já foram resolvidos e não uma invenção de uma ideia qualquer, genérica. Uma arquitetura é a história da arquitetura, como um poema é a história de outros poemas. Você não poetiza sem saber outros poemas. Se alguém vai fazer um centro cultural tem na cabeça o Sesc Pompeia, tem o CCSP (Centro Cultural São Paulo), vai pensar o que tem de significativo lá. 

E sobre o momento em que vivemos?

É um momento muito difícil. Sem cultura e sem grana não dá para se esperar muita coisa. Mas estamos de pé e continuamos pensando que podemos fazer um Brasil melhor. Não é só uma questão de ser brasileiro. A pior coisa é o patriotismo. Somos seres humanos no mundo e vivemos com todos. Espero que a cultura tenha mais oportunidade de verbas e pessoas inteligentes para lidar com isso. Sem cultura e financiamento, não existe arquitetura. 

Teatro Mauá, entregue em 2001 e tombado pela cidade.

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